De repente aconteceu o impensável! O
que Vítor Gaspar e Passos Coelho achavam péssimo, que era renegociar as
condições de pagamento e, levar o memorando até ao fim sem qualquer revisão dos
prazos aconteceu. E consequentemente outra grande noticia: “Regressámos aos
mercados”. Ou seja o dinheiro não chegava e o que tínhamos que pagar não ia
existir, então há que empurrar com a barriga para a frente e da pior maneira.
Contrair mais dívida e nas mesmas condições. Um embuste, mas que soa a
maravilha.
O
“regresso aos mercados”, que foi ontem notícia e hoje vai ser comemoração,
tornou-se uma cornucópia de excitações. Portugal nos mercados! Milhões a
escorrerem para o país sedento, bonança garantida, aleluia, como valeu a pena
tudo o que penamos! No frenesim, Vítor Gaspar, besta até à semana passada,
passou a bestial. Que esperto, por não ter pedido a extensão dos pagamentos
logo que a Grécia o conseguiu! Que genial, por ter sussurrado ao ministro das
finanças da Alemanha e ter esperado quietinho pela sua vez! Que mestre que é o
Primeiro que o deixa fazer, que esperto que é o Relvas que nos distrai enquanto
a gente aplicada faz o seu trabalhinho nos corredores, e eis-nos nos mercados!
Bendito mercado que nos dá o pão de cada dia, santificado seja o Vosso nome!
Não
se divirta, cara leitora ou leitor. Tudo isto cheira mal demais.
A
operação de empréstimo a cinco anos que hoje será concretizada vai-se mesmo
realizar como previsto. Não é “mercado” nenhum quem compra os títulos da dívida
do Estado português, aliás o “mercado financeiro” é tudo menos uma feira em que
se compra e vende aos gritos. Neste caso, é uma operação sindicada, em que
quatro bancos vendem os títulos a clientes com os quais já negociaram até há
dias os preços e as quantidades. O operação toda é registada em poucos minutos.
Esse preço não depende das condições de pagamento da economia em causa, mas
antes das garantias que o BCE e as autoridades europeias asseguram: o que quer
que aconteça, eles pagam ou garantem que seja paga a conta final. O governo
português, pelo seu lado, é generoso como sempre: empresta um bilião ao BANIF
(com o dinheiro dos contribuintes) para que o BANIF compre 700 milhões de
dívida pública (a juros que vão agravar o endividamento que será cobrado aos
contribuintes).
O
que temos hoje é portanto uma operação política em que Merkel garante aos
eleitores alemães que Portugal não é a Grécia, em que Passos Coelho procura
sossegar os autarcas do PSD e em que Paulo Portas se procura safar como puder
ser. Benditos mercados que vieram socorrer os aflitos.
É
uma operação tanto mais entusiástica e mais gongórica quanto mais fantasiosa.
Os benditos mercados sorriem a Portugal, mas os impostos aumentaram este mês
cerca de 30 a 40% para muitos dos contribuintes. Os mercados abriram as portas,
terminou o sufoco: mas e os salários? Voltam ao que eram? E as pensões? São
devolvidas? E o IRS? Vai baixar? E o IVA? Volta atrás? Nada. Nem um cêntimo.
Roubado está, roubado fica. Eles estão a dançar no nosso funeral.
Façamos
por isso as contas. Imaginemos que a taxa de juro deste empréstimo a cinco anos
seja de 3% (será muito superior). Ou a economia portuguesa cresce pelo menos 3%
cada um desses cinco anos (para que as receitas fiscais aumentem também e o
Estado possa pagar o serviço da dívida), ou esta operação não pode ser
financiada. E Portugal não vai crescer 3% ao ano. Pelo contrário, neste ano de
2013 o produto vai cair pelo menos 2% (e pagar 3% de juro?). E as previsões das
próprias instituições credoras são de que Portugal não consegue crescer a esse
ritmo, entre outras coisas porque a política de austeridade que é aplicada com
a sua bênção provoca recessão. Por outras palavras, isto é uma mistificação:
benditos mercados que nos emprestam para que fiquemos a dever cada vez mais.
Alguém
notou que hoje o Eurostat anunciou que Portugal é o terceiro país
proporcionalmente mais endividado da União Europeia, com mais de 120%? Benditos
mercados que tanto pão conseguem levar para casa.
Um
dia, o essencial tem de bater à porta: a única renegociação que interessa
realmente, porque tem efeitos para a economia, será a reestruturação da dívida
que determine o abatimento de uma parte da dívida, a redução dos juros e das
regras e a alteração dos prazos. Só assim será possível sacudir o peso da canga
da dívida da vida das pessoas, em vez de se continuar a corrida para a
bancarrota, acentuada agora com o anunciado corte de 4 biliões (ou seja, mais
aumento de impostos ou mais redução do salário indireto e do valor real das
pensões). Nada do que é agora feito altera essa evidência: Portugal não pode
pagar em 2016 o dobro do que paga agora em serviço de dívida e não pode pagar
em 2012 mais de 20 biliões de euros. Atrasar os pagamentos sem alterar a dívida
é a estratégia de quem quer enganar os contribuintes.
Por
isso, é lamentável mas compreensível a estratégia de António José Seguro, que
se veio vangloriar de ter tornado possível a operação de hoje graças ao facto
de ter garantido que, se houver mudança de governo, as políticas da troika
continuarão a ser aplicadas rigorosamente. A esquerda e o país que luta contra
a troika nem precisariam de ser lembrados que precisam de derrotar a estratégia
da troika, que é a de Seguro. Mas é vantajoso que sejam os próprios promotores
da austeridade e da economia da bancarrota a lembrar-nos o que querem fazer.
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